terça-feira, 15 de julho de 2008

POEMAS DE FERNANDO PESSOA
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho. Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa — eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.
A Chuva Desce a Ladeira
A ÁGUA da chuva desce a ladeira. É uma água ansiosa. Faz lagos e rios pequenos, e cheira A terra a ditosa.
Há muitos que contam a dor e o pranto De o amor os não qu'rer... Mas eu, que também não os tenho, o que canto É outra coisa qualquer.
A Lua (dizem os ingleses)
A LUA (dizem os ingleses) É feita de queijo verde. Por mais que pense mil vezes Sempre uma idéia se perde.
E era essa, era, era essa, Que haveria de salvar Minha alma da dor da pressa De... não sei se é desejar.
Sim, todos os meus reveses São de estar sentir pensando... A Lua (dizem os ingleses) É azul de quando em quando.
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma)
a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Autopsicografia
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama
coração.
A pálida luz da manhã de inverno
A pálida luz da manhã de inverno, O cais e a razão Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer, Ao meu coração. O que tem que ser Será, quer eu queira que seja ou que não.
No rumor do cais, no bulício do rio Na rua a acordar Não há mais sossego, nem menos sossego sequer, Para o meu 'sperar. O que tem que não ser Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.
A tua voz fala amorosa...
Qual é a tarde por achar Em que teremos todos razão E respiraremos o bom ar Da alameda sendo verão, Ou, sendo inverno, baste 'star Ao pé do sossego ou do fogão? Qual é a tarde por voltar? Essa tarde houve, e agora não. Qual é a mão cariciosa Que há de ser enfermeira minha — Sem doenças minha vida ousa — Oh, essa mão é morta e osso ... Só a lembrança me acarinha O coração com que não posso.
Liberdade
Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não fazer ! Ler é maçada, Estudar é nada. Sol doira Sem literatura O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D.Sebastião, Quer venha ou não !
Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca.
Mais que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...
Momento imperceptível
Momento imperceptível, Que coisa foste, que há Já em mim qualquer coisa Que nunca passará?
Sei que, passados anos, O que isto é lembrarei, Sem saber já o que era, Que até já o não sei.
Mas, nada só que fosse, Fica dele um ficar Que será suave ainda Quando eu o não lembrar.
Nada sou, nada posso, nada sigo
Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lato céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor

Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.

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